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Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 22 | Orfeu e a descida aos infernos

Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*


Uma rubrica da Federação Portuguesa pela Vida em parceria com a Comissão Diocesana da Cultura, por Luís Manuel Pereira da Silva**


 

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ faz-se, neste passo, ao som da lira de Orfeu, instrumento a que, segundo as tradições míticas, ele próprio acrescentou mais duas cordas, perfazendo nove, como o número das musas, filhas de Mnemósine e de Zeus, a quem se atribuía a origem das diversas artes: Calíope, musa da poesia, Clio, musa da história, Érato, musa da lírica coral, Euterpe, musa da flauta e, por isso, da música, Melpómene, musa da tragédia, Polímnia (ou Poliímnia), musa da pantomima, Terpsícore, musa da poesia ligeira e da dança, Talia, musa da comédia e Urânia, musa da astronomia.

E onde nos leva Orfeu?

O mito de Orfeu e Eurídice é dos mais fecundos da história clássica e tantas vezes repercutido nas múltiplas artes, entre as quais merecerá particular destaque a singular ópera (1762) de Gluck, de título homónimo. Mas não apenas da história principal se guardam memórias que se tornaram intemporais. As referências com que o decoraram as penas de Virgílio e Ovídio mantêm-se até hoje. Gil Vicente, no seu auto da barca do Inferno, recorda Caronte e o seu papel na travessia do rio Aqueronte. No Natal do sr. Scrooge, o forreta protagonista da história coloca uma moeda em cada olho do seu finado sócio. Alusões ao que do mito se mantém, na memória coletiva.

Mas de Orfeu não ficou só a curiosidade. Ficou um denso mito de que vale a pena fazer memória e cruzar, neste caminho de regresso a Ítaca sob o sonho do Éden, as interseções e divergências entre a cultura clássica e o cristianismo.

Sigamos, no nosso relato, o que nos contam Pierre Grimal[1] e Luc Ferry[2].

Orfeu está apaixonado por Eurídice, uma ninfa ou filha de Apolo. Esta, fugindo de Aristeu, que a pretendia seduzir, pisa uma serpente que, mortalmente, a pica. Orfeu decide descer aos infernos para a recuperar para a vida. Ali, seduz, com a sua lira de nove cordas, todos os seres, até os mais empedernidos de todos, superando, mesmo, todas as maldições: ‘a roda de Ixíon deixa de girar, a pedra de Sísifo equilibra-se por si própria imobilizando-se, Tântalo esquece a fome e a sede, as Danaides já não tentam encher de água o tonel perfurado’ (Pierre Grimal, p. 341). Consegue convencer Hades e Perséfone que consentem em deixá-los partir, mas com a condição de que Orfeu não se volte para trás, antes de sair dos Infernos.

À boa maneira grega, a maldição atualiza-se, porque a humanidade de Orfeu o faz sucumbir e desrespeitar a condição.

Não nos interessa, aqui, discutir a que se deverá esta tentação última de Orfeu (que já estava perto de cumprir o desejo de sair dos Infernos), e que Luc Ferry atribui a uma insanável coexistência entre o amor e a morte.

Numa perspetiva cristã, não só não há essencial coexistência entre o amor e a morte como a própria tradição repercutiu que o amor supera e transcende a morte, ao colocar, no próprio símbolo dos apóstolos, a referência à descida de Jesus Cristo aos infernos.

A tradução portuguesa do Catecismo da Igreja Católica, reproduzida a partir da edição típica latina, refere que ‘Jesus Cristo […] desceu à mansão dos mortos’, uma tradução atualizada do conceito que, no original, se afirmava, desde a primeira vez em que este credo passou a incluí-la, como ‘descendit ad inferna’, o que poderá à letra, traduzir-se por ‘desceu aos lugares inferiores’, pois assim o pensava a cosmologia de então. O lugar da morte estava na parte inferior do universo. Descia-se para o ‘Hades’, o ‘Sheol’, sendo pensado como o lugar sem memória, aliás, numa evocação da ideia de ‘letes’, o rio cujas águas faziam esquecer, apagar toda a memória (curiosamente, uma das palavras gregas para ‘verdade’ era ‘alêtheia’ que, à letra, significa ‘não perder a memória’).

Faço uma breve deriva para voltarmos a regressar a este ponto.

O símbolo dos apóstolos, proposto como um dos credos a proferir nas eucaristias dominicais (sendo mais frequente, porém, o nicenoconstantinopolitano), foi, como recorda Denzinger, no seu Enchiridion, tido, durante muitos séculos, como um símbolo construído, literalmente, pelos doze apóstolos, tendo cada um deles ditado um dos doze artigos. Os vestígios mais antigos desta ‘lenda’ são de 390, numa carta enviada pelo Sínodo de Milão (presidido por Santo Ambrósio) ao Papa Sirício, sendo o primeiro documento em que se fala de ‘credo apostólico’.

Sabemos, porém, hoje, que não foi assim, sendo que este credo se foi construindo, como processo de amadurecimento eclesial (hoje, diríamos ‘sinodal’), por duas vias. A mais antiga, a romana, terá iniciado em finais do século II, sendo transmitida em grego e latim. A mais recente terá surgido no século VII, no sul da Gália (atual França), tendo sido prontamente acolhida por Roma. Este processo ficou concluído e fechado com a edição do catecismo romando, em 1566 e com o breviário romano, em 1568.

Curiosamente, pode constatar-se que a inclusão do artigo ‘desceu aos infernos’, em símbolos de fé ‘ortodoxos’ (isto é, não heréticos, como acontecia com os arianos ou semiarianos) só ocorre em 404, em ‘expositio’ da autoria de Tyrannius Rufinus[3].

Esta constatação parece-me contradizer a tese de significativa influência do orfismo no cristianismo, como pretendem, por exemplo, Luc Ferry e o próprio Pierre Grimal, podendo-se acrescentar que as divergências entre as duas narrativas abundam.

Orfeu desce aos infernos, fruto de um amor de natureza conjugal. Jesus Cristo desce aos infernos (à mansão dos mortos) como ação de libertação universal.

Do mito de Orfeu e Eurídice permanece um resquício de ‘maldição’: Eurídice regressa uma segunda vez, aos Infernos.

Da descida de Jesus Cristo advém uma definitiva certeza de que os homens são ‘responsáveis pela sua própria sorte […] o seu céu descansa na liberdade [pois] até [a]os condenados deixa o direito de querer a sua condenação’[4].

Deus propõe, na perspetiva cristã, a salvação para todos. A liberdade de a aceitar torná-la-á eficaz.

Esta síntese torna atual a afirmação feita no símbolo dos apóstolos. Na sua morte e, como recorda Hans Küng, em estreita união com a sua ressurreição[5], Jesus opera uma salvação para todos, mas em que a possibilidade da perda e condenação definitiva continua em aberto, não já como uma maldição, na linha do mito de Orfeu, mas como uma decisão de não acolher a salvação.

Mas o Deus Cristão não é o das maldições: é o da redenção e da salvação. É ‘A’ Salvação!

[1] Cfr. Pierre Grimal, Dicionário de mitologia grega e romana, Lisboa, Antígona Editores, 2020, pp. 340-342.

[2] Luc Ferry, A sabedoria dos mitos, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2014, pp. 227-234.

[3] Cfr. Heinrich Denzinger e Peter Hünermann, El Magisterio de la Iglesia: Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum, Barcelona, Herder Editorial, 1999, n. 16.

[4] Cfr. Joseph Ratzinger, Escatología: la muerte yla vida eterna, Barcelona, Herder Editorial, 2008, pp. 233.

[5] Hans Küng afirma que ‘se este artigo da fé se entende simbolicamente vinculado à ressurreição, não tem, pois, porque oferecer dificuldades ao homem de hoje.’ – Hans Küng, Credo: El Símbolo de los Apóstoles explicado al hombre de nuestro tiempo, Madrid, Editorial Trotta, 1994,, p. 104.




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